Hoje apresentaremos a segunda entrevista realizada pela equipe do Blog Cidade como Direito, do GT de Assuntos Urbanos da AGB-Vitória. O convidado de hoje é Rodrigo Huebra. Morador do balneário de Bicanga, na Serra, é licenciado em Geografia e, atualmente, mestrando do Programa de Pós-Graduação em Geografia da UFES. Para além da academia, Rodrigo é graffiteiro. E esta será a tônica principal de nossa conversa. Embora as vezes passe despercebido, os muros e as paredes das cidades revelam vozes, gritos, enfim, manifestações de um espaço urbano complexo e conflituoso. É com o objetivo de aprendermos um pouco mais sobre esse tema que convidamos Rodrigo, que além de grafiteiro, é geógrafo, e nos mostra relações entre esses saberes/práticas.
"Tenho
tentado retratar de forma artística um pouco do universo desses povos que
historicamente sofrem com os descasos por parte do Estado e consequentemente o
preconceito da sociedade como um todo, que de certa forma acaba por negar o seu
passado."
1- Cidade Como Direito –
Para começar a conversa, quando você começou praticar o graffiti? Onde você
realizou os seus primeiros trabalhos?
Rodrigo
Huebra – Meu afinco pelo desenho vem desde criança quando meu pai chegava da
rua ou do trabalho e trazia revistas com figuras em preto e branco para serem
coloridas. Sempre gostei de desenhar e pintar e tinha facilidade em olhar
coisas ou outros desenhos e fazer uma cópia bem parecida. Meus primeiros
contatos com o graffiti vieram através da internet. O que mais me chamou a
atenção no graffiti foi à atitude e o fato de ser feito na rua em um local que
não foi feito para receber um desenho artístico. Logo depois comecei a
observa-los nas ruas da Grande Vitória e fiquei encantado com aqueles desenhos coloridos
feitos na parede e com latas de spray. No início do ano de 2008 entrei em um
curso de graffiti no CRJ (Centro de Referência da Juventude) em Vitória com
aulas ministradas pelo grafiteiro Fagundes. Após aprender algumas técnicas
comecei a ir para as ruas me arriscar. Na época morava em Vila Velha, logo,
meus primeiros trabalhos foram feitos no referido município. Ainda não tinha um
estilo definido, mas a vontade de ir para a rua era grande o bastante para que
isso não se tornasse um empecilho. Atualmente a maioria dos meus trabalhos
estão localizados na Serra, município onde resido. De alguns meses pra cá venho
direcionando meus trabalhos para a cultura indígena. Tenho tentado retratar de
forma artística um pouco do universo desses povos que historicamente sofrem com
os descasos por parte do Estado e consequentemente o preconceito da sociedade
como um todo, que de certa forma acaba por negar o seu passado. Essa vem sendo
a tônica do meu estilo artístico dentro do graffiti.
2- CCD – Para a maioria
das pessoas, há uma certa confusão para se definir o graffiti e a pichação.
Você pode definir melhor esses termos? São práticas antagônicas?
RH-
Na minha visão não há como pensar o graffiti e a pichação de forma antagônica
como tenta demonstrar o discurso oficial. Há uma série de questões que precisam
ser debatidas antes de dizer que um é arte e outro é vandalismo para não
incorrermos no risco de fazer uma análise superficial e pautada em juízo de
valores. Em primeiro lugar há que se questionar o que é arte e o que não é
arte? A linha que separa essas duas concepções é muito tênue e por isso mesmo torna
a delimitação do que é arte muito “escorregadia” eu diria. Em segundo lugar a
raiz do graffiti é a pichação, ou seja, o graffiti veio da pichação. O que os
diferencia são questões meramente estéticas. Essa diferença estética também
leva as pessoas a fazerem julgamentos equivocados sobre a questão e assim
acabam legitimando certos discursos sobre a pichação. Apesar das diferenças
apresentam uma raiz em comum e essencial: a relação com a rua, tida como espaço
substancialmente público e de diálogo, resignificando-a para além de sua mera
funcionalidade, o famoso “direito de ir e vir”. Essa relação entre as
diferentes formas de arte de rua é mais complexa do que tentam fazer parecer os
debates oficiais. A discussão Graffiti x Pichação vai além da diferença entre
ambos já que esse debate pautado nas diferenças entre esses tipos de
manifestação tem um caráter muito mais normativo do que sociológico/geográfico.
Pensado sobre a ótica da diferença o debate cria uma falsa dicotomia impregnada
de moralismo, onde graffiti é arte e pichação é vandalismo, é sujeira. Além
disso, a estética do graffiti parece incomodar menos as pessoas e por isso é
mais aceito pela sociedade. A pichação sempre é colocada como algo que “suja”
ou “emporcalha” a cidade como costumam dizer os jornais e as autoridades ao
abordarem o tema. Porém, há que se pontuar, a sujeira não incomoda da mesma
forma em todos os locais da cidade. Se assim fosse, não seria admitido que
pessoas vivessem em condições sociais precárias, em barracos de zinco ou sobre
esgotos que fluem à ausência de saneamento básico. Mas a “sujeira” incomoda
aonde? Nas vitrines, no espaço em que as
aparências devem ser mantidas, o diálogo suprimido e as vozes dissonantes não
podem ser amplificadas?
Segundo
o artigo 65 da lei federal nº 9605/98, pichar é considerado crime ambiental
podendo acarretar detenção, multa ou prestação de serviços comunitários. Como
pode uma intervenção urbana ser considerada crime ambiental num país que
executa grandes obras em áreas de proteção ambiental, aprova um Código
Florestal plausível de questionamento e que sedia um evento de nível global
onde os governantes não conseguem avançar na discussão de políticas de proteção
a natureza? Por outro lado, a lei diz que não é crime “a prática do graffiti realizada
com o objetivo de valorizar o patrimônio público ou privado mediante
manifestação artística”, desde que haja consentimento do proprietário. Ora,
então graffiti feito sem o consentimento do proprietário deixa de ser graffiti?
Não
podemos esquecer que muitas vezes o espaço negado ao pixador e ao grafiteiro é
oferecido, inquestionavelmente, aos anúncios publicitários e aos outdoors.
Enquanto a pixação e o graffiti subvertem essa lógica determinada entre espaço
e propriedade na rua, os anúncios são convidados a impor sua presença na
paisagem urbana à medida que fomentam a ciranda comercial, em função da qual
devem girar nossas vidas, nossos estudos, nosso trabalho e todas as políticas
que nos circundam.
Enquanto
essa for a diretriz, manifestações artísticas e expressivas continuarão tendo
mais espaço como questão de polícia do que como objeto de políticas públicas.
Afinal, mais fácil do que reconhecer potencialidades é apontar delinquentes e encerrar
de vez a discussão antes que ela fique profunda demais para ser debatida.
3- CCD - Eduardo Galeano
usou a expressão "O que dizem as paredes" para citar algumas frases
escritas nas paredes de algumas cidades da América Latina. O que você destaca
nas suas leituras das “paredes” e dos “muros” da Grande Vitória?
RH-
Tenho observado que além de graffiti e pichações os muros da Grande Vitória
também estão sendo utilizados para manifestações referentes a algumas questões
sociais e políticas, ainda que, de forma bem tímida. O movimento do Passe Livre, que luta por
melhorias na mobilidade urbana, parece ser o que mais se utiliza dos muros da
cidade para passar alguma mensagem para a população. Palavras de ordem como
“Pule” (referência a pule a roleta) e Tarifazero.org (blog do movimento) vem se
tornando comum na paisagem urbana da Grande Vitória. Percebo também
intervenções feitas em prol do uso das bicicletas como meio de transporte na
cidade e intervenções para questionar
nossa dependência em relação ao Petróleo. Em uma recente viajem que fiz pela
América do Sul percebi que em países como a Bolívia o muro é utilizado de forma
mais intensa para manifestações de ordem social e política. No Brasil essa
prática ainda é pouco utilizada. Aliás, uma crítica que costumo fazer é que a
maioria dos movimentos de luta social e política utilizam pouco a linguagem
artística para fazer a crítica dos problemas que afetam a sociedade. "Enquanto a pixação e o graffiti subvertem essa lógica determinada entre espaço
e propriedade na rua, os anúncios são convidados a impor sua presença na
paisagem urbana à medida que fomentam a ciranda comercial, em função da qual
devem girar nossas vidas, nossos estudos, nosso trabalho e todas as políticas
que nos circundam."
4- CCD - No bairro de Jardim Camburi, em
Vitória, possivelmente no ano passado (2011), um grupo de artistas grafitou os
muros de uma escola municipal do bairro, praticamente rodeando toda a escola.
Durante a confecção dos desenhos muitas pessoas paravam para admirar. Os muros
da escola chamam a atenção e trouxeram de certa maneira uma nova vida a escola,
tornando-a mais “atrativa” para os estudantes e para quem passa. Como você vê
isso, é assim mesmo? De que maneira o graffiti pode ajudar nesta resignificação
dos lugares da cidade?
RH-
Bom, eu não sei dizer se aquela intervenção no muro teve relação com alguma
atividade interna da escola até mesmo porque eu não participei do evento.
Porém, eu entendo que para a escola se tornar mais atrativa para os estudantes
é preciso que a escola internalize o graffiti em suas atividades cotidianas devido
ao potencial pedagógico desse tipo de arte. Ora, porque não pintar as paredes
internas da escola? Por que não fazer que o estudante seja um dos protagonistas
na produção do graffiti feito na sua própria escola, local em que ele está
cotidianamente? Acho que levar o graffiti para dentro da escola, não apenas no
sentido físico, mas também pedagógico, seria o primeiro passo para tornar a
escola mais atrativa para o aluno. Em relação a última pergunta eu acredito sim
que o graffiti tem a capacidade de resignificar
certos lugares da cidade. Eu entendo que o graffiti contribui, e muito,
para romper o olhar “viciado” que as pessoas tem de certos pontos da cidade.
Lugares deteriorados e abandonados que sofrem uma intervenção artística como o
graffiti passa a chamar a atenção das pessoas de outra forma ao quebrar a
monotomia das paisagens urbanas com o seu universo de cores e formas e ás vezes
interagindo com a própria arquitetura urbana.
5- CCD – O grafite é
considerado um dos elementos do Hip Hop, uma cultura contra-hegemônica, com
raiz nas periferias. De que maneira, na sua opinião, o graffiti contribui para
a visibilidade de uma outra cidade, isto é, de aspectos que se encontram
imersos nesse cotidiano urbano cada vez mais alienado.
RH-
Primeiramente é preciso dizer que nos dias de hoje o graffiti “extrapolou” o
universo do Hip-Hop. Apesar de ter surgido dentro do movimento Hip-Hop o
graffiti hoje consegue ser pensado e visto para além das fronteiras desse
movimento. No início o graffiti trazia muito do universo do Hip-Hop nos
desenhos, além das letras, que foram marcantes nos primórdios do graffiti,
principalmente na cidade de Nova York que foi o lócus primordial de surgimento desse
tipo de manifestação em meados da década de 70. Quando o graffiti é alçado a
categoria de arte urbana ele passa a explorar de forma mais intensa outros
universos e também começa a atrair pessoas que não são do universo do Hip-Hop
ou do skate por exemplo. Eu mesmo sou grafiteiro e não vim do movimento
Hip-Hop. Apesar de gostar de ouvir rap meu universo de origem, digamos assim, é
outro. A leitura que faço disso é que antes o graffiti era mais utilizado para
dar visibilidade ao universo de um movimento que outrora era fortemente
marginalizado, como é o caso do Hip-Hop. Hoje a arte do graffiti ao explorar
outros universos amplia o leque de temas que podem ser abordados pelos
grafiteiros e possibilita, assim, visualizar outra cidade a partir de um
horizonte mais amplo de relações.
6- No último Encontro
Nacional de Geógrafos (ENG), realizado em Belo Horizonte no mês de Julho, você
apresentou uma oficina relacionando a estética do graffiti e o ensino de
geografia. Nos fale sobre essa relação. De que maneira o graffiti pode ser
utilizado como uma ferramenta na sala de aula de geografia?
RH-
No decorrer de minha trajetória enquanto geógrafo e grafiteiro comecei a
perceber que esses dois universos podem dialogar com muito potencial. Desde
2010 venho tentando fazer isso. Apesar de não ser algo inédito dentro da
Geografia, é algo ainda muito incipiente eu diria. Incipiente não só dentro da
Geografia, mas do ambiente escolar de um modo geral.
A
Geografia entende o espaço geográfico (seu objeto de estudo) ao mesmo tempo
como um produto e uma condição para a reprodução de uma sociedade. E o graffiti
é entendido, na visão da Geografia, enquanto prática e discurso que se apropria
do espaço numa relação que muitas vezes é conflituosa com a ordem hegemônica e
que não se manifesta apenas por condições estruturais, mas também de todo um
imaginário constituído. O graffiti encontra-se entre duas percepções: uma da
sociedade instituída, que o rotula no seu sentido mais amplo enquanto ato de
vandalismo; e a dos próprios grafiteiros que o consideram como uma forma de
arte alternativa, como contracultura, onde se manifesta o desejo da
criatividade, estimulado por vezes pela crítica a realidade social ou pelo
simples desejo de embelezar os espaços urbanos. Porém, o graffiti não se fecha
em si, porque a sua prática exige uma experiência estética com outros tipos de
arte, de linguagem, de escrita e de conhecimento das técnicas e estilos que
estão imbuídos dentro desta arte. É justamente nesse ponto que acreditamos que
esteja a potência educadora do graffiti. O professor, que possui também o papel
social de ampliar o universo cultural dos discentes, deve utilizar estratégias
para que o processo de ensino aprendizagem conduza a algum tipo de
transformação no aluno. Essas estratégias devem ser provocadas ao nível dos
esquemas mentais dos alunos, da sua criatividade e expressividade contribuindo
para um crescimento mais consciente e responsável por parte do aluno seja
dentro ou fora do ambiente escolar.
Alguns
autores consideram a escola o lócus privilegiado de apropriação e criação de
cultura (entendida aqui como objetivação humana) e tendo em vista tanto a
inserção de alunos quanto de professores em ambientes culturais intra e
extra-escolar. Nesse sentido a experiência e a formação estético-cultural
desses sujeitos se tornam elementos importantes a serem absorvidos enquanto
parte do processo educativo.
Essa formação, que chamaremos aqui de
estético-cultural, pode e deve ser articulada ao mundo da cultura enquanto
leitura do real. Na atividade docente, que tem entre seus objetivos a formação
de seres humanos, esse tipo de experiência estético-cultural dele (professor) e
do aluno proporciona muito mais do que apenas o ensino/aprendizagem do
conhecimento científico, mas também de conhecimentos diversos produzidos
sócio-historicamente. As artes, cada qual com sua linguagem específica, são
manifestações da ação historicamente determinada pela humanidade e possuem um
potencial transformador. Sendo assim, o graffiti enquanto manifestação cultural
oriunda das ruas permite essas transformações nos indivíduos já que possibilita
a instituição de novas relações sócio-espaciais por exemplo.